Opinião

 ‎Como os auditores verificam o futuro — Análise ao Parecer da CMC ‎

Johny Soki

Analista de mercados financeiros

1 Dezembro, 2025 - 18:45

1 Dezembro, 2025 - 18:45

Johny Soki

Analista de mercados financeiros

‎O Parecer Genérico da Comissão do Mercado de Capitais (CMC), emitido recentemente, aborda uma questão que, normalmente, gera ambiguidades no mercado de capitais: qual é, exactamente, o papel do auditor externo quando um emitente apresenta projecções financeiras num prospecto de oferta de valores mobiliários? A questão não é trivial. Enquanto a auditoria a demonstrações financeiras históricas é uma prática consolidada há décadas, a intervenção do auditor sobre informação financeira prospectiva (IFP) apresenta desafios conceptuais e práticos que carecem de clarificação.

‎O Parecer da CMC procura responder a esta necessidade, invocando a Norma ISAE 3400 e estabelecendo um marco regulatório para o mercado. O documento apresenta uma estrutura lógica e estabelece princípios fundamentais. A CMC é inequívoca ao afirmar que a responsabilidade pela preparação, elaboração e razoabilidade dos pressupostos da IFP é “exclusiva e inalienável” do Conselho de Administração do emitente. Esta é uma posição correcta e alinhada com as práticas internacionais.

‎O Parecer também delimita adequadamente o escopo do auditor a um trabalho de assurance moderado, focado no processo e na razoabilidade dos pressupostos, e não na garantia de resultados futuros. O auditor examina se o processo de elaboração das projecções é credível, se os pressupostos são razoáveis e se a elaboração é consistente com as políticas contabilísticas do emitente. Não avalia o mérito económico da estratégia subjacente nem a probabilidade de sucesso do negócio — essas são decisões da gestão.

‎No entanto, o Parecer deixa espaço para melhorias significativas em três dimensões: a clareza da comunicação do risco para o investidor, a orientação processual para o auditor e a sofisticação regulatória na abordagem da informação prospectiva. Quanto à clareza para o investidor, o Parecer menciona a inclusão de um “parágrafo de Ênfase” no relatório do auditor que alerte para a natureza não factual da projecção e para a limitação da garantia prestada. Esta é uma prática correcta, mas que pode ser reforçada. Em mercados como o europeu, regulado pela ESMA (Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados), a tónica é colocada numa linguagem de “aviso” mais explícita e padronizada. A CMC poderia prescrever um texto padrão, mais directo e incisivo, a ser incluído de forma proeminente no relatório do auditor.

‎Este texto deveria explicar, em linguagem simples e directa, que as projecções financeiras são baseadas em pressupostos sobre eventos futuros que podem não se concretizar, que a presente análise do auditor não constitui uma garantia de que os resultados projectados serão alcançados, e que as decisões de investimento não devem basear-se unicamente nesta informação. Esta abordagem, comum no âmbito do Regulamento de Prospecto da UE, ajuda a gerir as expectativas dos investidores de retalho, que podem não compreender a distinção técnica entre uma auditoria a contas históricas e um exame à informação prospectiva.

‎O Parecer estabelece “o quê” o auditor deve verificar — a razoabilidade dos pressupostos, a coerência dos critérios e a elaboração consistente das previsões — mas não detalha “como”. Embora a ISAE 3400 detalhe os procedimentos, a CMC, enquanto regulador local, tem a oportunidade de definir um padrão mínimo de diligência para o mercado angolano, aumentando a consistência e a qualidade do trabalho dos auditores. A CMC poderia emitir uma Instrução ou Norma técnica complementar que detalhasse os procedimentos mínimos que se espera que um auditor execute.

‎Por exemplo, o auditor deveria ser obrigado a realizar uma análise de sensibilidade, verificando se o emitente considerou cenários alternativos (optimista, pessimista) e qual o impacto de variações nos pressupostos-chave, como taxa de câmbio, preço de commodities ou taxa de juro. Deveria, também, ser exigido um “back-testing”, comparando projecções passadas do emitente (se existirem) com os resultados efectivamente alcançados, para avaliar a fiabilidade histórica do seu processo de projecção. A verificação de fontes externas é, igualmente, importante: o auditor deve confirmar que os pressupostos macroeconómicos (inflação, crescimento do PIB, etc.) se baseiam em fontes credíveis e independentes, como o BNA, o FMI ou o Banco Mundial.

‎Finalmente, o auditor deve assegurar que as políticas contabilísticas usadas na projecção são consistentes com as usadas nas demonstrações financeiras históricas auditadas. Este detalhe não substitui a ISAE 3400, mas cria um “porto seguro” para os auditores e estabelece um nível de qualidade uniforme para o mercado.

‎O Parecer trata a “IFP quantitativa” como um bloco monolítico, sem distinguir entre diferentes tipos de informação prospectiva. O Regulamento de Prospecto da União Europeia, interpretado por especialistas como a Clifford Chance, do qual me alinho, estabelece uma distinção importante entre três categorias de informação prospectiva. A primeira é a “Profit Forecast” — uma projecção apresentada como um número específico ou um intervalo muito curto, para a qual a gestão tem um alto grau de confiança.

‎A segunda é a “Profit Estimate” — uma projecção para um período financeiro já terminado, mas cujas contas ainda não foram publicadas (e, portanto, ainda não foram auditadas). A terceira é a “Trend Information” — uma declaração mais qualitativa sobre mudanças materiais no desempenho futuro esperado.

‎Esta distinção é importante porque o nível de escrutínio do auditor e a responsabilidade da gestão podem variar significativamente de acordo com o tipo de informação prospectiva apresentada. A CMC poderia considerar a adopção desta taxonomia. Por exemplo, para uma “Previsão de Lucro” explícita, os requisitos de fundamentação por parte do emitente e de verificação por parte do auditor deveriam ser mais exigentes do que para uma simples declaração de tendências. Isto permitiria uma maior flexibilidade para os emitentes, ao mesmo tempo que se aplicaria o nível de rigor adequado a cada tipo de informação partilhada com o mercado.

‎Isto permitiria uma maior flexibilidade para os emitentes, ao mesmo tempo que se aplicaria o nível de rigor adequado a cada tipo de informação partilhada com o mercado. Em conclusão, o Parecer da CMC é um documento que estabelece os princípios fundamentais de forma clara e alinhada com as normas internacionais. As sugestões apresentadas visam complementá-lo.

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