A notícia do dia da Turquia, na terça-feira, era a “operação antiterrorista” que tinha levado para a prisão 126 curdos, incluindo advogados, artistas e jornalistas. Até ao momento em que o presidente e candidato a novo mandato Recep Tayyip Erdogan adoeceu em direto na TV, durante uma entrevista. A indisposição levou-o a cancelar pelo menos dois dias de agenda quando faltam menos de duas semanas para a primeira volta das eleições e a maioria das sondagens colocam-no em segundo.
Erdogan chegou à entrevista transmitida por dois canais com um atraso de hora e meia. Dez minutos depois do início, a câmara tremeu a meio de uma pergunta e o jornalista levantou-se enquanto se ouvia uma outra voz a soar preocupação. O entrevistado regressou um quarto de hora depois para responder a mais algumas perguntas, não sem antes se justificar e pedir desculpa pelo sucedido. “Foram dias de muito trabalho. Foi por isso que apanhei uma gastroenterite”, disse Erdogan. “A certa altura, perguntei-me se não seria mal interpretado se cancelássemos o programa. Mas comprometi-me. Peço-vos perdão a vós e ao nosso público”, disse o homem que está no poder há 21 anos, primeiro como primeiro-ministro, depois como presidente.
Foi um momento incomum, o que Erdogan protagonizou, mas não foi inédito. A BBC recorda que em junho de 2016, semanas depois do golpe de Estado falhado, uma entrevista em direto também foi interrompida porque se sentiu indisposto durante alguns minutos.
Em 2011 e 2012, Erdogan, de 69 anos, foi submetido a cirurgias gastrointestinais. Desde então o seu estado de saúde tem sido fonte de especulação. Desta vez não foi diferente, tendo o diretor de comunicação da Presidência rejeitado os rumores de que o líder teria sofrido um ataque cardíaco e estaria hospitalizado. O vice-presidente, Fuat Oktay, também quis deixar uma mensagem de tranquilidade, ao assegurar que Erdogan está bem de saúde, mas acabou por levantar dúvidas ao diagnosticar o contratempo de saúde como “uma ligeira gripe”.
Erdogan cancelou a preenchida agenda, mas ainda assim apareceu em videoconferência, na cerimónia da inauguração da primeira central nuclear do país, de fabrico e operação da russa Rosatom, em Akkuyu, na costa mediterrânica.
O combativo Erdogan deu lugar a uma pálida e frágil sombra quando se dirigiu da sua secretária aos participantes na cerimónia, aos seus compatriotas, e ao líder russo Vladimir Putin, também em ligação vídeo. “O nosso país ascendeu à liga das nações com energia nuclear, embora com um atraso de 60 anos”, disse o homem que de seguida recebeu elogios de Putin: “Quero dizê-lo sem rodeios: sabe como estabelecer objetivos ambiciosos e está a avançar com confiança para a sua concretização”.
Antes de ter sido obrigado a suspender a agenda, Erdogan iria protagonizar quatro dezenas de comícios, um cenário de desinformação sobre os adversários e em que dá largas ao populismo.
Erdogan tem mantido uma posição equilibrista no que toca à invasão da Rússia à Ucrânia. Se por um lado condena a ação militar de Moscovo e defende a integridade territorial do país sob ocupação parcial, por outro não tem fornecido assistência militar a Kiev à exceção dos drones Bayraktar no início da invasão, não aderiu às sanções económicas e ouviu o líder russo dizer que a Turquia pode vir a ser um centro de processamento de gás russo através do gasoduto Turkstream, inaugurado em 2020.
O presidente turco tem vindo a tentar protagonizar um papel de mediador do conflito, como se viu no caso do acordo do corredor dos cereais do Mar Negro, embora os acontecimentos domésticos, em especial os sismos de fevereiro, tenham vindo abrir um novo cenário político, com milhões de pessoas a sofrer na pele os efeitos do desastre natural, e em consequência um novo quadro eleitoral, com um candidato apoiado por quase toda a oposição.
Sinais contraditórios
No que respeita ao vizinho com que partilhou a tragédia dos terramotos de fevereiro, Ancara envia sinais contraditórios. Já lá vai o tempo em que Erdogan usava a notícia de um caça sírio abatido pelos F-16 turcos como matéria de comício em plena campanha eleitoral, como aconteceu em 2014.
O presidente já mostrou abertura para restaurar as relações diplomáticas cortadas há mais de uma década, quando o início da guerra civil síria transformou o amigo Bashar al-Assad em inimigo a abater por via do apoio a vários grupos armados de extremismo variável.
As dez sondagens realizadas em abril indicam que Erdogan recebe em média 44,4% de intenções de voto, Kilicdaroglu 47,5% e Muharrem Ince cerca de 6%.
A intervenção russa de apoio a Damasco mudou os planos turcos e de há meses para cá decorreram várias reuniões, como a que aconteceu em Moscovo na segunda-feira com os ministros da Defesa da Turquia e da Síria à mesma mesa. De um lado exige-se o fim do apoio às fações armadas e o controlo de Idlib; do outro, a repressão sobre os grupos armados curdos.
Fora as relações diplomáticas, o tratamento humanitário dos turcos aos sírios está longe de ser recomendável. Segundo a Human Rights Watch, os guardas fronteiriços turcos disparam, torturam e usam força excessiva contra quem tenta fugir do país devastado. A ONU calcula em 3,6 milhões o número de refugiados sírios em território turco.
A esperança da oposição
Kemal Kilicdaroglu, de 74 anos, líder do maior partido de oposição (CHP, herdeiro de Ataturk) é o candidato que agrega as restantes formações mais significativas e tem o apoio do partido curdo (que se encontra na iminência de ser ilegalizado). As sondagens atribuem-lhe uma ligeira vantagem, mas sem vencer à primeira.
Na segunda volta, o homem que Erdogan disse “não ser sequer capaz de pastorear uma ovelha” beneficiaria dos eleitores de Muharrem Ince, ex- CHP e candidato às eleições anteriores. Promete fazer apenas um mandato e nesse período levar o sistema de volta a um parlamentarismo com o poder judicial independente.