O relatório sobre os abusos sexuais na Igreja Católica revelou que foram validados 512 testemunhos relativos a 4815 vítimas, anunciou o pedopsiquiatra Pedro Strecht, líder da comissão independente que estuda os casos. “Não é possível quantificar o número total de crianças vítimas”, referiu, uma vez que o contacto com a comissão era voluntário.
“Importa referir que, na realidade, foi apenas a partir de 1995 que estes crimes passaram a ser inscritos no Código Penal português enquanto abuso sexual de crianças, e apenas a partir de 2007 se tornaram públicos”, frisou.
“Sabemos, também, que a percentagem da sua existência enquanto praticada por membros da Igreja é muito pequena, sobre a realidade do assunto dos abusos sexuais de menores em geral”, acrescentou Pedro Strecht, acrescentando que é também “baixo o número de abusadores dentro do seio da Igreja e, por isso mesmo, continua a ser importante não confundir a parte com o todo”.”Tenho 71 anos, mas nunca esqueci ou esquecerei”, disse uma das vítimas, citada por Pedro Strecht.
Casos em todo o território
No total, foram recebidas mais de 600 denúncias. Lisboa, Porto, Braga, Santarém e Leiria foram os distritos onde foram reportados mais casos. “Há casos em todos os distritos”, revelou o responsável. A incidência nestes distritos explica-se, em parte, pela existência de seminários ou outras instituições religiosas.
A maioria dos abusos decorreu em locais como seminários, colégios internos ou instituições de acolhimentos, sacristia, confessionário, a casa do pároco e no seio dos agrupamentos de escuteiros.
A média de idades das vítimas era de onze anos e a 20,1% das vítimas têm hoje menos de 40 anos.
96% dos autores dos abusos eram do sexo masculino, sendo que 77% eram padres.
48% das vítimas falaram dos abusos pela primeira vez.
Segundo a socióloga e investigadora Ana Nunes de Almeida, 58,2% das vítimas eram do sexo masculino e 42,4% mulheres e hoje têm uma idade média de 52,4 anos.
Na altura dos abusos, 58,6% das vítimas residia com os pais.
As décadas de 1960, 70 e 80 do século XX foram as que registaram um maior número de casos de abuso sexual no seio da Igreja em Portugal.
Em relação às modalidades de abuso, predominam sexo anal e manipulação de órgãos sexuais e masturbação no caso das vítimas masculinas e insinuação em vítimas masculinas. A maioria das vítimas foi abusada mais do que uma vez.
Maioria dos abusados continua a afirmar-se católica
Dos abusados, 53% continuam a afirmar-se católicos e 25,8% são católicos praticantes.
Em média, as vítimas demoram cerca de dez anos para revelar os abusos e em 43% dos casos essa denúncia aconteceu apenas quando contactaram a comissão. Os homens fazem-no ao cônjuge e a amigos, as mulheres normalmente a familiares ascendentes.
Em 77% dos casos a vítima nunca apresentou queixa à igreja e só em 4% dos casos houve lugar a queixa judicial.
“Normalmente acontece antes da puberdade e vítimas são próximas do abusador e há uma relação de poder do abusador sobre a vítima”, afirmou o psiquiatra Daniel Sampaio, que revelou que 18 por cento das meninas e oito por cento dos rapazes são vítimas de abuso sexual antes dos 18 anos.
Daniel Sampaio recordou que, nas entrevistas que fez, ouviu testemunhas dizer que “o senhor padre era a voz de Deus”.
25 casos enviados para o MP
A comissão independente enviou 25 casos para o Ministério Pública, MAS a maioria dos casos denunciados já prescreveu. O ex-ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio acrescentou que a Comissão Independente não podia “ficar com estes de dados na mão e não enviar ao Ministério Público”.
De acordo com Laborinho Lúcio, a Comissão Independente não tem de fazer juízos e não tem competência no domínio.
“Nós enviámos para o Ministério Público este tipo de casos. A [nossa] investigação parece relativamente simples, na linha tradicional de uma investigação criminal”, realçou.
Embora possam surgir várias interpretações, para este estudo foi definido o conceito de abuso sexual como todas as práticas sexuais previstas na lei portuguesa como crime, tendo este estudo abrangido o período entre 1950 e 2022.
O coordenador referiu que a maior parte das vítimas acabou por afastar-se da igreja, entendendo que “não há reparação possível”, mas que espera que a igreja e os abusadores peçam desculpa publicamente.
Pedro Strecht referiu ainda que no final do relatório há uma série de recomendações para a igreja, mas também para a sociedade em geral “para que nada fique igual”.
Generalidade da hierarquia favorável à posição do Papa sobre abusos
O coordenador da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja disse que, na generalidade, a hierarquia católica portuguesa “é favorável” à posição do Papa na condenação dos abusos.
“Com algumas divergências, e nalguns casos, a opinião dos bispos e dos superiores gerais, que foram entrevistados individualmente, é manifestamente favorável ao transmitido pelo Papa” Francisco, que considerou, em 2019, na Carta Apostólica “Vos estis lux mundi”, que “os crimes de abuso sexual a crianças são crimes que ofendem a Nosso Senhor, causam danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas e afastam-nas da comunidade”, afirmou Pedro Strecht.
“Sabemos, também, que a percentagem da sua existência enquanto praticada por membros da Igreja é muito pequena, sobre a realidade do assunto dos abusos sexuais de menores em geral”, acrescentou Pedro Strecht, acrescentando: “tal como volta a ser baixo o número de abusadores dentro do seio da Igreja e, por isso mesmo, continua a ser importante não confundir a parte com o todo”.
Na mesma sessão, a socióloga Ana Nunes de Almeida indicou que, no contacto com a hierarquia da Igreja Católica, nomeadamente os bispos, foi encontrado “um contraste” entre a gravidade e o fluxo dos testemunhos que chegavam à comissão e “um relativo distanciamento, ou alheamento, desse terreno”.
O “crescendo das notícias sobre os abusos e os trabalhos da Comissão Independente” foi importante para uma outra perceção da realidade por parte da hierarquia, tendo sido também verificada uma “notável diversidade interna”, tendo em conta que “a Igreja não falava e não fala a uma só voz”, sublinhou a socióloga.
Neste contexto, foi sublinhado, também, o “movimento de fora para dentro e de cima para baixo”, com destaque para o “papel impulsionador de vários papas, em particular do Papa Francisco”.
O relatório da Comissão Independente começou a ganhar corpo a partir de 11 de janeiro do ano passado, quando começou a receber testemunhos, e em menos de uma semana foram validadas 102 denúncias.
Os casos de abusos sexuais revelados ao longo de 2022 abalaram a Igreja e a própria sociedade portuguesa, à imagem do que tinha ocorrido com iniciativas similares em outros países, com alegados casos de encobrimento pela hierarquia religiosa a motivarem inúmeros pedidos de desculpa, num ano em que a Igreja se vê agora envolvida também em controvérsia, com a organização da Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa.
Liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, a comissão independente é ainda constituída pelo psiquiatra Daniel Sampaio, pelo antigo ministro da Justiça e juiz conselheiro jubilado Álvaro Laborinho Lúcio, pela socióloga e investigadora Ana Nunes de Almeida, pela assistente social e terapeuta familiar Filipa Tavares e pela cineasta Catarina Vasconcelos.
Esta segunda-feira será conhecida a primeira reação da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), presidida pelo bispo de Leiria-Fátima, José Ornelas, e para 03 de março foi já convocada uma assembleia plenária extraordinária da CEP para analisar o relatório.