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Pilar del Rio: “Os padres devem poder ter relações sexuais e casar-se uma, duas, três, cinco vezes. Como todos nós podemos.”

05-03-2023 9:19

Bernardo Mendonça

Jornalista Expresso

05-03-2023 9:19

Bernardo Mendonça

Jornalista Expresso

Depois de um ano intenso de celebração do centenário de José Saramago, que levou a obra do Nobel da Literatura a todo o mundo, pelas mãos de Pilar del Rio, que preside à Fundação Saramago, a jornalista fala agora do seu livro, “A Intuição da Ilha”. Uma obra que desvela os bastidores dos anos passados em Lanzarote. E aqui comenta sobre os abusos da Igreja, os perigos da crise social e climática, o “terrorismo do machismo”, o direito à Eutanásia e a importância da linguagem inclusiva para nomear os vários géneros e identidades. “A violência de género é a coisa mais repugnante que se está a passar. Elas sofrem em nome das pátrias, do patriarcado, de Deus, em todas as civilizações e culturas.” E deixa um recado para a Igreja: “Os padres devem poder ter relações sexuais e casar-se uma, duas, três, cinco vezes. Como todos nós podemos. E, ao se permitirem relações normais, deixará de haver estes atos criminosos, canalhas e imorais que é o abuso de menores e pessoas dependentes.”

O último ano tem sido intenso para a jornalista Pilar del Rio que, no último ano, tem corrido o país e o mundo a celebrar o centenário de José Saramago, através da Fundação que preside e que tem mantido viva a memória do único escritor de língua portuguesa distinguido com o Prémio Nobel da Literatura, e que foi o seu companheiro por mais de duas décadas.

Essa sua história de amor, e parceria na vida e no trabalho, encantou e inspirou muita gente, em grande parte pelo filme “José e Pilar”, de Miguel Gonçalves Mendes, que nos permitiu acompanhar de perto – de uma forma quase íntima – o quotidiano de um casal que funcionava como duas partes de um corpo. Ou, dito de outra maneira, a história de um homem e de uma mulher que se encontraram e que se amaram, completaram e potenciaram.

O mote para esta conversa foi o livro que Pilar publicou o ano passado: “A intuição da ilha” [editado pela Porto Editora], sobre os 17 anos vividos com Saramago em Lanzarote, a ilha mais ocidental das Canárias, desde que se mudaram para lá em 92, depois do Governo de Cavaco Silva ter censurado a obra “O Evangelho Segundo Jesus Cristo, ao eliminar o livro que fora escolhido por 3 instituições culturais para representar a nova literatura portuguesa na Europa.

Recorde-se que, em sede parlamentar, o Governo de Cavaco Silva justificou a decisão com 3 razões: porque o livro ofendia os católicos que não toleravam que se questionasse o dogma; porque Saramago era comunista; e porque segundo esse Governo de Cavaco, o livro estava… mal escrito.

Desta forma, e citando Pilar no livro que assina: “o Governo da altura assumindo funções de juiz inquisitorial e de crítico literário que não lhe correspondiam, pretendeu encerrar uma polémica política que havia mobilizado escritores e partidos, que gerou debates no Parlamento Português e europeu e demonstrações de solidariedade de representantes culturais e políticos de outros países”.

Seis anos depois, Saramago foi galardoado com o mais prestigiado prémio literário do mundo. Este tipo de censura de um governo português sobre a obra de um escritor seria possível hoje? Ou o país aprendeu com esse atentado à liberdade em plena democracia? Haverá outros tipos de censura, mais ou menos encapotadas, que ameaçam a vida e obra dos escritores e demais artistas? Estas são as primeiras questões lançadas a Pilar neste podcast. E a resposta segue pronta.

“Não. Não seria possível. Mas há muitas formas subtis para que determinados livros e determinadas ideias não concorram [a prémios]. Ainda agora ouvimos em pleno Parlamento autênticas monstruosidades, barbaridades, que vão contra os Direitos Humanos e contra a Constituição Portuguesa. E, no entanto, não se põe em causa a liberdade [de expressão] de ninguém. O que se passou naquele momento não voltará a repetir-se, porque será difícil que se reúnam tantas pessoas com tão baixos critérios e com uma consciência moral tão pequena. Não se voltará a fazer aquilo. Poderá gostar-se ou não gostar de um livro, mas em sede parlamentar ir contra as decisões tomadas por instituições livres como a Universidade de Lisboa, como PEN Clube Português ou a Associação de Escritores, não vai repetir-se. Foi uma lição muito bem aprendida e uma vergonha mundial. E tempos depois Durão Barroso pediu perdão publicamente em São Bento. Ele tinha feito parte do Governo de Cavaco, não falou quando aconteceu essa situação, mas enquanto primeiro-ministro pediu desculpas a José Saramago.”

Nessa ocasião Durão Barroso afirmou que “a criação literária está acima do plano político e partidário”. E como reagiu Saramago?

“Respondeu que a ofensa era à liberdade de expressão da Constituição Portuguesa, que tinha sido pública, e ele queria que o pedido de desculpas fosse público e não um almoço privado para dizer “ah…que desajeitados fomos.”

O que é certo é que foi na sequência deste ato censório que surgiu …a ideia da ilha: “E se fossemos viver para Lanzarote?”. Uma ideia que ocorreu a Saramago, como tantas outras perguntas que deram origem aos seus livros: “E se Fernando Pessoa se encontrasse com o seu heterónimo Ricardo Reis no ano da sua morte? E se a Península Ibéria se desprendesse da Europa e navegasse para sul? E se Jesus Cristo não fosse Deus, nem apoiasse o seu projeto? E se todos ficássemos cegos?” – É assim que Pilar explica como surge a ideia de saírem do país para uma ilha das Canárias, já que meses antes, Samarago visitara aquela terra árida, cheia de mar e de sol, e se deslumbrara “pelo silêncio dos vulcões ao cair da tarde.”

Como se refaz uma vida e se muda de país já depois 60 anos? É sobre esse renascimento e nova vida de Saramago numa casa e numa ilha que muito o inspirou, que Pilar escreveu este livro. Sem nunca lhe tomar o protagonismo. Dando-nos a conhecer que foi já em Lanzarote que Saramago escreveu “Ensaio Sobre a Cegueira” e os muitos outros títulos que se seguiram, desfiando-se nos capítulos assinados por Pilar os acontecimentos cotidianos, banais, grandiosos ou inusitados na casa de Lanzarote e a origem de muitas ideias que deram origem a muitos dos escritos de Saramago.

Como se percebe no livro “A Intuição da Ilha”, o lar a que Saramago passou a chamar “A Casa”, tinha a porta aberta para o mundo, onde passaram algumas das grandes figuras das artes e da política mundial. E onde nunca faltava bacalhau e café português sobre a mesa, com certeza.

Como escreveu Fernando Gomez Aguilera no prefácio do livro “A intuição da ilha” : “Pilar del Rio dá forma cintilante à épica quotidiana de Saramago em Lanzarote, enquanto compõe um hino à cultura da hospitalidade praticada em sua casa, onde o partilhar se cinzelar com os caracteres de uma lei.” E eu acrescento, percebe-se que era uma casa de criação e de celebração. De silêncio, agitação e festa. Onde às refeições se continuou a deixar um copo de vinho para Saramago, mesmo depois dele partir. Mas Pilar deixa claro nesta conversa que não gosta do culto da personalidade, e que a celebração de Saramago sempre foi feita com humor.

Enquanto jornalista e humanista, Pilar comenta ainda a guerra, e a crise na Europa e esta inflação galopante que assalta o país e faz crescer os preços a cada mês, a cada semana, e que levou a que milhares de pessoas saíssem à rua, num protesto a que chamaram “Vida Justa”. Um movimento que começou nos bairros periféricos e rumou ao centro da capital para exigir medidas urgentes para fazer face à subida dos preços dos bens essenciais e da habitação. Para quem se governa e para onde caminhamos? Que perigos este grande descontentamento pode criar? Podemos estar a caminhar para uma epidemia de votos em branco, como foi descrita no romance “Ensaio sobre a Lucidez, de Saramago?

Pilar responde: “Esse voto em branco foi uma metáfora. Porque, no dia seguinte, quando o sistema decide castigar as pessoas que votaram dessa maneira e diz que já não haverá mais recolha de lixo e limpeza das cidades, são os próprios cidadãos que apanham o lixo e limpam a cidade. E são os próprios cidadãos que enfrentam o sistema. Essa é a lucidez. A lucidez é os cidadãos terem consciência de que eles são o centro, o sol do mundo. E que somos nós os cidadãos que pomos e tiramos governos. E que governamos para nós ou contra nós.”

Nesta longa conversa, Pilar fala ainda de feminismo, da importância da linguagem inclusiva e do direito à Eutanásia.

“Tenho um testamento vital e quando chegar a hora quero morrer lúcida e se possível sem sofrimento, e sem dar sofrimento aos demais. E não me venham com essas histórias da dor. Quero ser dona da minha vida e da minha morte. E quero que a eutanásia seja um direito também em Portugal. Quero morrer no momento que considere adequado.”

E ainda nos dá música e lê uma carta de Maria Madalena, escrita por Saramago.

Como sabem, o genérico é uma criação original da Joana Espadinha. Os retratos são da autoria de Nuno Botelho. A sonoplastia deste podcast é de João Martins e Salomé Rita.

Voltamos para a semana com mais uma pessoa convidada. Até lá, já sabem: pratiquem a empatia, boas escutas e boas conversas!

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