A agenda da sociedade civil angolana tem sido suficientemente distinta da dos partidos políticos na oposição e tem determinado largamente a agenda política do partido-Estado MPLA, verificável pelos marcos históricos protagonizados nos últimos anos. A ciência política define sociedade civil como sendo grupos de pressão que actuam com independência no sentido de pressionar e até mesmo derrubar, quando incontornável, quem detém o poder político. A sua agenda, como se nota, é independente.
Passando a influenciar a acção do regime angolano, que reage negativamente mediante o uso desenfreado da força, com prisões e assassinatos, os partidos na oposição, subjugados e acomodados institucional e financeiramente, deixaram de representar ameaça. Para além da perseguição, tortura e eliminação física de membros da sociedade civil, o partido-Estado tem se esforçado bastante para corromper alguns, especificamente com emprego, habitação e dinheiro em troca de silêncio, em alguns casos, mas, noutros, por acções mais directa e hostil contra membros da sociedade civil. Apesar destas investidas, a sociedade civil tem resistido e conseguido manter a sua agenda.
A aliança eleitoral estabelecida neste ano entre alguns membros da sociedade civil com os partidos na oposição constituiu um risco à partida, certamente consciente. A denominada Frente Patriótica Unida é até uma resposta parcial a uma exigência da sociedade civil feita em 2017 e antes, no sentido de ser adoptada uma estrutura conjunta onde os partidos na oposição fossem às eleições coligados, não dispersos, conforme ocorreu em países africanos que na última década derrubaram ditaduras.
A aliança periclitante cedo revelou-se numa subjugação dos pequenos partidos e sociedade civil à agenda do maior partido na oposição, a UNITA, uma espécie de aliança de cavaleiro com cavalo, como Luís Araújo tem caracterizado a FPU.
Os membros da sociedade civil mantiveram-se submissos à UNITA, ao rumo que dava à FPU e impávidos diante do silêncio e opacidade gravosa em muitas questões. E porquê não tinham, enquanto sociedade civil numa concertação política, uma posição independente? Aliás, os membros da sociedade civil alinhados são conhecidos pelas suas declarações fundamentadas segundo a qual é incoerente tomar posse num órgão cuja composição emana de uma fraude eleitoral. Nem adianta abordar, por ser risível demais, a questão de o presidente da FPU ter dito depois que nunca referiu a existência de fraude eleitoral.
Se ao MPLA esmagar a agenda da sociedade civil sempre foi uma missão hercúlea, a tarefa ficou muito facilitada com a ajuda da FPU. Esta institucionalizou membros influentes, arregimentados na mesma instituição estatal que emergiu de um simulacro eleitoral. Quer os que estejam como deputados, como os que ficaram de fora, todos se mantiveram calados diante de uma decisão contrária às suas posições anteriores.
Engolir sapos – que abordaremos noutro artigo – é agora uma conduta política extensível aos membros da sociedade civil alinhados. Assim, consumou-se a corrupção da agenda da sociedade civil, agora subserviente aos ditames partidários.
E como «todo o mundo é composto de mudança», como cantou José Mário Branco, talvez os membros da sociedade civil tenham mudado e passado a acreditar no argumento segundo o qual a salvação de Angola exige a presença nas instituições, ainda que colectivamente sabido estarem sob tutela canina do partido-Estado. Mas este argumento não tem sustentabilidade, logo, é uma falácia discursiva. Vejamos dois episódios.
Primeiro episódio: o caso de Nimi-a-Nsimbi, deputado e presidente da FNLA a quem foi atribuído dois assentos. Nem os membros da sociedade civil tiveram capacidade para evitar com que um colega fosse impedido de permanecer no parlamento com a vestimenta que trajava, nem sequer simbolicamente. Houve repercussão nas redes sociais, mas duas questões se colocam: Nimi-a-Nsimbi e qualquer pessoa que vá ao parlamento já poderá vestir-se livremente depois desta situação? E, por acaso, os deputados na oposição, mormente os membros da sociedade civil, renunciaram ao subsídio de atavio acoplado ao subsídio de instalação? Ora, se até para vestirem-se recebem dinheiro, daí resulta a sujeição a imposições absurdas como a de trajar-se à imagem do modelo definido pelo partido-Estado.
Segundo episódio: a primeira negociação feita entre o MPLA e a UNITA – negociação assumida pela UNITA – foi sobre a ocupação dos lugares na vice-presidências da Assembleia Nacional. O acordo definia que a UNITA teria a segunda vice-presidência, indicando a vice-presidente do partido Arlete Chimbinda. Volvido pouco tempo, o acordo foi quebrado pelo MPLA, que preencheu os cargos. Notemos o seguinte: em várias províncias estavam detidos dezenas de cidadãos por protestarem contra os resultados fraudulentos, reivindicando uma vitória da UNITA.
Entre os detidos estavam membros da sociedade civil, compagnons de route dos novos deputados. Porém, a UNITA estava a realizar um acordo oficioso com o MPLA para lugares na presidência do parlamento. A preocupação com estes cargos é grave, mas, suponhamos que fosse uma negociação pela libertação dos cidadãos detidos. Facilmente seria invocada a independência das instituições, por ambas partes, sendo responsabilidade dos tribunais julgar os detidos. Pensando politicamente, demonstraria preocupação, sinal de que não foram esquecidos e de gratidão por não se terem calado perante a fraude.
O acto de corromper ultrapassa a questão monetária. Os ideais também são corrompidos, e a agenda e ideais da sociedade civil foram corrompidos ao ponto de alguns membros adoptarem discursos semelhantes aos proferidos pelos fiéis ao MPLA nas suas homilias de bajulação, usando termos como «salvador de Angola», «meu presidente», «meu líder»”, etc.