Opinião

Para quem governa João Lourenço?

Manuel Soque

Professor assistente na Wittenberg University (EUA)

7 Agosto, 2025 - 21:54

7 Agosto, 2025 - 21:54

Manuel Soque

Professor assistente na Wittenberg University (EUA)

A teoria do contrato social, desde Rousseau a Locke, parte da ideia de que o Estado existe para servir os governados, garantindo-lhes direitos fundamentais em troca da delegação parcial da sua autonomia. Quando essa reciprocidade se desfaz, o vínculo político fragiliza-se, cedendo espaço a regimes de coerção e desprezo.

É esse colapso relacional que marca hoje a governação de João Lourenço e do MPLA. Longe de cumprir o princípio basilar segundo o qual “o mais importante é resolver os problemas do povo”, herança do ideal independentista, o regime parece cada vez mais orientado para satisfazer interesses externos e proteger elites nacionais. O povo — o verdadeiro pilar da soberania — é ignorado, humilhado e, quando protesta, assassinado.

A chegada de Lourenço à presidência, em 2017, foi acolhida com expectativa: prometia-se combate à corrupção, à impunidade e renovação do poder. Mas passados oito anos, o regime permanece autoritário, centralizado, impermeável à participação popular e hostil ao contraditório. A confiança social foi corroída — não por inimigos externos, mas por decisões internas que negligenciam a dignidade dos governados.

Lourenço ausenta-se frequentemente do país, numa suposta diplomacia económica que não se reverte em melhorias concretas para a população. Estas ausências reforçam a imagem de um chefe de Estado distante, preocupado mais com metas impostas por agências internacionais — como o FMI ou o Banco Mundial — do que com os problemas domésticos. Enquanto o povo enfrenta fome, desemprego e degradação dos serviços públicos, o presidente assina acordos que aumentam a dívida, agravam a desigualdade e hipotecam o país.

A realidade quotidiana é brutal. O poder de compra colapsou. Muitos angolanos já não conseguem fazer três refeições por dia. Alguns procuram comida em contentores de lixo. O frango deu lugar a rabinhos, pescosinhos e asinhas — restos que antes eram desprezados. A cesta básica é hoje um luxo. Em resposta, emergem soluções informais como a sócia — partilha colectiva dos custos dos alimentos — que, embora revele solidariedade comunitária, expõe o vazio da acção estatal.

O povo cansou-se de ser constantemente sacrificado. A tensão social explodiu nos dias 28, 29 e 30 de julho de 2025, com a greve dos taxistas contra mais um aumento do preço do gasóleo e da corrida de táxi. Milhares manifestaram-se em cidades como Luanda, Icolo e Bengo, Malanje, Lunda Norte, Benguela e Huambo. A resposta do Estado foi implacável: repressão violenta, detenções em massa e execuções sumárias. João Lourenço apenas se pronunciou dias depois — não para confortar os familiares dos mortos ou abrir espaço ao diálogo, mas para lamentar os prejuízos dos empresarios cujas lojas foram saqueadas, prometendo indemnizá-los de imediato. As famílias das vítimas, como a de Ana Mabiala, não receberam qualquer palavra de apoio material para os funerais nem promessa de responsabilização dos agentes envolvidos. Esta ausência de empatia não é apenas um falhanço moral: representa um desprezo directo pelo artigo 30.º da Constituição da República de Angola, que consagra o direito à vida como inviolável. Quando o Estado mata manifestantes desarmados, fere não só corpos, mas o próprio pacto constitucional que o deveria vincular.

A desigualdade institucional tornou-se ainda mais evidente quando Lourenço classificou os manifestantes, de forma simplista, como “vândalos” que foram “derrotados” pela Polícia Nacional. Elogiou os agentes da polícia, mesmo perante provas de que alguns participaram em pilhagens e assassinatos. Os “vândalos do musseque” que saquearam lojas de comida foram rapidamente capturados e julgados sumariamente. Já os “vândalos do asfalto” — os que desviam milhões do erário — continuam a circular impunes, intocáveis. Esta dualidade na administração da justiça constitui uma clara violação do artigo 23.º da Constituição da República, que garante igualdade de tratamento a todos os cidadãos perante a lei.

Vídeos nas redes sociais mostram tanto civis quanto agentes da polícia a roubar sacos de arroz e caixas de frango. Esses episódios revelam o alcance transversal da fome — atingindo até os instrumentos repressivos do próprio Estado — e desmontam a narrativa do “relativismo” da crise alimentar promovido pelo presidente. Também confirmam a degradação material das forças de segurança e a contradição de um regime que exige ordem sem oferecer justiça.

Esta política de indiferença não é acidental — é um projecto. Uma política do desprezo deliberadamente desenhada para excluir os mais pobres e proteger uma elite privilegiada. Uma ordem sustentada num simulacro de estabilidade que tranquiliza a comunidade internacional, desde que se mantenha a aparência de normalidade institucional. Mas um sistema assim não é sustentável. Quando se governa contra o povo e não para o povo, a legitimidade política implode. Se não forem implementadas reformas profundas que restabeleçam o pacto social e respeitem a dignidade humana, Angola poderá enfrentar convulsões cujas consequências serão tão imprevisíveis quanto inevitáveis.

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