De acordo com o comunicado emitido pela Administração Geral Tributária (AGT), intitulado “Suspensão dos Softwares de Facturação FASTFACTURA e QUIANNI”, datado de 29 de Agosto de 2025, foram suspensos, a partir de 1 de Setembro de 2025, o certificado n.º 252/AGT/2020, referente ao software FASTFACTURA, e o certificado n.º 77/AGT/2019, referente ao software QUIANNI.
Como consequência directa destas suspensões:
No período de 1 a 30 de Setembro de 2025, todos os utilizadores destes dois softwares deveriam efectuar a migração – não planeada, note-se – para um novo software de facturação certificado e homologado pela AGT;
A partir de 1 de Outubro de 2025, todas as facturas emitidas por esses softwares deixaram de ter validade fiscal, não sendo mais aceites pela AGT.
O que esteve na origem da decisão
A AGT identificou diversas inconformidades nas facturas e nos ficheiros SAF-T (um formato digital estruturado de reporte contabilístico), emitidos por esses softwares, que contrariam a legislação vigente, nomeadamente os seguintes diplomas legais:
- Decreto Presidencial n.º 312/18, de 21 de Dezembro – Regime Jurídico de Submissão Electrónica dos Elementos Contabilísticos dos Contribuintes;
- Decreto Executivo n.º 74/19, de 6 de Março – Regras e Requisitos para Validação de Sistemas de Processamento Electrónico de Facturação;
- Decreto Presidencial n.º 95/23, de 6 de Abril – Regime Jurídico da Comunicação e Tramitação Electrónica do Procedimento Tributário e do Processo de Execução Fiscal;
- Decreto Presidencial n.º 71/25, de 20 de Março – Regime Jurídico das Facturas;
- Decreto Executivo n.º 683/25, de 22 de Agosto – Estrutura de Dados de Software, Modelo de Facturação Electrónica e respectivas especificações técnicas e procedimentais.
O episódio levanta uma questão relevante: até que ponto as fragilidades na definição dos requisitos funcionais de software podem comprometer a conformidade fiscal e a reputação das empresas?
Lições sobre conformidade e responsabilidade
As academias e os manuais de engenharia de software são unânimes num ponto: a observância dos requisitos legais e regulatórios é uma etapa essencial no levantamento e análise funcional de qualquer aplicação, seja no desenvolvimento de novos produtos, seja na evolução de sistemas já existentes.
Todavia, a responsabilidade por garantir essa conformidade é compartilhada. Participam desse processo, de forma interdependente, os contabilistas e fiscalistas, os programadores, os gestores e os líderes empresariais.
- Contabilistas e Fiscalistas – devem definir os requisitos funcionais do processo a ser digitalizado, traduzindo com rigor as obrigações legais aplicáveis e validando, após o desenvolvimento, se o software cumpre tais requisitos (fase de operação).
- Desenvolvedores de Software – devem seguir fielmente os requisitos definidos, assegurando-se da sua validade legal antes da implementação e realizando testes de conformidade (fase técnica).
- Gestores – cabe-lhes coordenar os processos ponta-a-ponta, incluindo o desenvolvimento, a manutenção e a comercialização de softwares, bem como a gestão de riscos e mudanças associadas (fase de gestão).
- Líderes não Executivos – devem instituir sistemas eficazes de governação que assegurem a supervisão estratégica, a integridade dos processos e a realização de auditorias internas e externas regulares (fase de controlo).
É importante conceder o benefício da dúvida às empresas detentoras dos softwares, assumindo que não houve intenção deliberada de violar a lei. Vivemos num Estado Democrático e de Direito, onde o princípio da presunção da inocência deve prevalecer. Ainda assim, a eventual falta de conformidade técnica ou de diligência deve ser tratada com seriedade e segundo os mecanismos legais aplicáveis.
A responsabilidade é hierárquica. Quando há falhas operacionais, estas raramente se limitam à operação: são reflexo de insuficiências de gestão e, em última instância, de governação. Administrar uma empresa implica responsabilidades acrescidas – é um exercício de liderança responsável.
Substituir pessoas não substitui processos. Podem ocorrer mudanças de equipa e atribuições individuais, mas se a arquitectura empresarial e os mecanismos de controlo não estiverem devidamente definidos e implantados, a cultura organizacional prevalecerá sobre as boas intenções.
Como bem lembra Michael E. Porter, “a cultura come a estratégia ao pequeno-almoço”. A verdadeira transformação exige cultura de conformidade, ética e melhoria contínua.
Reflexão final
Mais do que um episódio isolado, este caso deve servir de alerta e de oportunidade para fortalecer o compliance fiscal, tecnológico e organizacional.
As empresas de software, as entidades fiscalizadoras e os utilizadores devem ver-se como parceiros na construção de um ecossistema digital confiável, onde a tecnologia serve a lei e a transparência reforça a credibilidade.