Especial

Gilberto Sacassinda: “Nós, africanos, temos de olhar para nós aceitando que estamos na Diáspora”

10-01-2023 3:02

Ulika da Paixão Franco

Em Lisboa

10-01-2023 3:02

Ulika da Paixão Franco

Em Lisboa

O que faria se, ao abrir a página das Nações Unidas na internet, se deparasse com um anúncio de 5 milhões de dólares para projetos em Angola?

Responder foi o que fez este filho de pai malanjino e mãe luandense que quis o destino que nascesse em Portugal, terra para onde a mãe rumou com o objectivo de se licenciar em Medicina. Nasceu em Lisboa, no Campo Grande, antes de a mãe terminar a especialidade em Radiologia e de, por terras de Camões, continuar, até por volta de 2012, de onde partiu para Luanda com os dois irmãos mais novos do protagonista desta história que, maior de idade, permaneceu na cidade do Porto para onde foi viver aos 9 anos. Apaixonado desde sempre pela engenharia aeronáutica, seguiu os conselhos da mãe e do núcleo familiar: “preto nunca conseguirá ter um posto de emprego nas engenharias mais complicadas, é preciso fazer opções por cursos que darão trabalho em qualquer sítio”. Acatou e, ainda que não tivesse optado pela previsível engenharia civil, abraçou os estudos de arquitectura em 2013, terminando o Bacharelato em 2016 e o Mestrado em Arquitectura e Urbanismo na Universidade do Porto em 2018.

No percurso deste predestinado em ligar as peças, Gilberto Alexandre João Sacassinda encontrou na construção de edifícios e na “melhoria das condições de vida das pessoas”- defende-o – “porque é isso que o arquitecto pensa: liga as peças e torna um edifício funcional em todos os aspectos, não olhando só para a praticidade e o custo, mas também para o bem-estar” – um instrumento para traçar o destino de uma infância marcada pela ausência do pai e pelo esforço da mãe em criar os seus filhos apesar das contrariedades. Alentava-o o dever da responsabilidade e a família foi peça fulcral para ter conseguido terminar o curso custeado com ajudas financeiras de quem lhe era próximo.

Hoje considera-se um privilegiado, afirmando: “Consegui estudar, consegui ter acesso a uma educação de alto nível e vejo que isso hoje é o tendão de Aquiles para tudo e mais alguma coisa na vida porque sem educação não há desenvolvimento.” Gilberto confessa-nos que se colocou “no palco do mundo” antes do que estava à espera. “Sempre tive muito a vontade de trabalhar em Angola. De poder ser um activo, de poder contribuir para o desenvolvimento de Angola, mas também sei que, actualmente, é complicada a situação dos jovens em Angola. Nos últimos 6 anos as oportunidades de emprego são para um core muito restrito e se não estás nesse core 80% das possibilidades de teres um trabalho com alguma dignidade, com alguma estabilidade, de puderes criar uma família não existem.”

“Sempre mantive o foco de regressar e contribuir para o desenvolvimento de Angola”

À inquietação que se foi colocando – “Tenho que me ajudar a mim primeiro!” – veio uma primeira resposta que começou por “conseguir trabalho na área e ajudar os meus irmãos no sentido de eles terminarem os cursos que estão a fazer. A minha irmã está a tirar Medicina, a seguir as pegadas da minha mãe; está no 4.º ano e já estagia em hospitais na cidade de Luanda. O meu irmão, se tudo correr bem, irá fazer Gestão no exterior de Angola”. A culturalização de Angola deu-se no seio familiar e através das viagens ao país nos períodos de férias, entre 2013 e 2017, durante os quais foi assistindo a uma viragem no cenário socioeconómico do seu país natal: “- Presenciei, in loco, a estadia dos portugueses, dos estrangeiros, a febre com a nova Marginal, com as oportunidades que Angola estava a dar, as possibilidades de expatriamento de capitais. Havia esta capacidade financeira e uma classe média que estava a ser criada, havia pessoas que tinham pequenas e médias empresas porque a economia formal e o Governo assim o permitiam. As pessoas tinham essa possibilidade que hoje já não têm. Eu vi e fiquei maravilhado com Angola na altura, mas nos três anos seguintes, em que ia a Angola por três semanas a um mês fui vendo a decadência das coisas até chegar a 2016, ao momento em que o preço do petróleo cai a pique e vêm a nu as verdadeiras debilidades da economia angolana.” Lidar com isto na altura “foi um choque. Foi um choque porque a imagem que eu tinha era a de que nós estávamos a desenvolver-nos. Durante este processo, dentro de mim começaram a como que sair umas faíscas e, mesmo perante as dificuldades, eu mantive para comigo que tinha de terminar o curso e regressar a Angola.”

As características pessoais sobressaem num percurso profissional que deixa espaço à impulsividade a que os familiares procuraram colocar freio, tanto assim que em 2019, depois de parecer assentar bagagem num atelier de arquitectura, decide virar a mesa e fundar a sua (primeira) start up a operar em Angola na área Energia Solar e Renováveis. “Após o meu primeiro ano de experiência profissional em Portugal como Arquitecto Estagiário e depois Preparador de Obras no Grupo Casais olhei para trás. É verdade que precisamos de construir, precisamos de fogos habitacionais com urgência porque o crescimento demográfico é de, calcula-se, 1.5 milhões de angolanos por ano. Se em 2019 éramos 28 milhões, actualmente somos 35 milhões. É um crescimento demográfico fora do normal, logo precisamos de fogos habitacionais. Ao mesmo tempo, para termos esses fogos é necessário investimento exterior.” E como é que se passa do sector da construção de fogos habitacionais para o sector da consciência energética? Perguntámos nós. Por paixão, respondeu-nos ele. “Esta minha paixão por Angola fez-me ligar as peças. Do termos de pensar no que é que alimenta a Indústria é que surge a tal necessidade da Energia”. E continua explicando o que o desperta e alimenta o sentido de responsabilidade global. “Vi uma oportunidade no chamar de atenção das várias instituições internacionais para o aquecimento global, para o termos de descarbonizar, o termos de fazer uma transição energética para fora dos combustíveis fósseis e investirmos em energias renováveis.  Pensei, deixa-me olhar para o sector petrolífero angolano. Até aos anos de 2013, 2014 nós sempre fomos o segundo maior productor de petróleo na África Subsariana, atrás da Nigéria; chegámos a ultrapassá-la quando estávamos a produzir 2.1 milhões de barris por dia. Em Angola o sector petrolífero sempre foi um sector em franco crescimento até à queda abrupta do preço do petróleo para os 19 dólares registados entre 2019 e 2020”.

Assim, depois de vários anos em que as políticas internacionais e as grandes petrolíferas mantiveram elevados lucros sobre o valor dos combustíveis, e nisto podemos incluir Sonangol, quando eu terminei o meu primeiro ano de experiência profissional já estava a fazer esta pesquisa para perceber qual a real capacidade de Angola poder tornar-se num fórum das energias renováveis e tirar esse peso das indústrias petrolíferas que representa, ainda hoje, 90% das exportações e do acesso a divisas, independentemente da diversificação da economia. Não tinha como eu não a colocar na cesta. A partir daqui que surgem os tais choques; eu começava a descobrir o sector petrolífero e as (suas) lacunas. Nós exportávamos petróleo, mas não refinávamos o suficiente para termos acesso aos seus derivados como a gasolina, o gasóleo, o jet fuel. Existiam projetos em andamento, a reestruturação da refinaria de Luanda que terminou este ano” (2022) “em 2019 tínhamos projetos como o da refinaria do Lubango que até hoje não se levantou e temos a refinaria de Cabinda onde lançou-se a primeira pedra. São projectos que já estavam em carteira.”

Se fizermos um terceto de tecnologia” pouparemos “1 bilião de dólares anualmente”

E assim, “como se fossem dados pequenos choques elétricos para esses projectos andarem”, o pensamento de Gilberto Sacassinda constrói uma ligação que vai da Indústria à Energia ao percecionar que “(nós) até a produzir energia eléctrica usávamos o petróleo, neste caso um derivado, o diesel. Em 2019 Angola estava numa situação bastante complicada, o preço do petróleo estava a baixar, nós tínhamos de manter a nossa importação de combustíveis do exterior não só para o consumo das viaturas no país, mas também para podermos ter a indústria a funcionar, o país a funcionar. Nós temos 12 centrais termoelétricas que funcionam a diesel e o gasto anual, em diesel, dessas centrais termoelétricas que funcionam 24 horas por dia ronda os 1.2 mil milhões de dólares. Como arquitecto, cheguei à conclusão de que nós, se fizéssemos um terceto de tecnologia, inovação e inteligência artificial, tendo como parceiros quem está nos patamares mais elevados – e um dos parceiros em Angola é a China – teríamos a oportunidade de poupar 1 bilião de dólares anualmente. Não vou dizer que outras pessoas não o tivessem visto, mas para mim isto era uma oportunidade de negócio fora do normal. Foi necessário estudar, ler muitos livros; pesquisei muito sobre engenharia eletrotécnica, engenharia solar e indústria petroquímica. Ao fazer a pesquisa de quanto é que poderia custar alimentarmos uma indústria, conectei as várias peças; aquilo que nós estávamos a resolver era mais abrangente. Estávamos a resolver um problema fulcral de desenvolvimento socioeconómico de uma nação. Vendo o desperdício que é ter unidades centrais termoelétricas, vi também a oportunidade de termos uma empresa que, acima de tudo, fazia toda a diferença ao, num período de 15 a 20 anos, competir com a Sonangol. O projecto era escaldo para o resto do continente africano. Nós, africanos, temos os recursos naturais, temos tudo em forma bruta e agora, com a tal indústria 4.0, muitos países como o Gana, como o Senegal estão a investir na transformação dos nossos produtos. Para tudo isto é necessária Energia. Energia está na base de tudo e eu vi aí uma grande oportunidade.”

Se este jovem com Angola no sangue atravessou fases mais solitárias durante o período académico vivido no Porto, no meio profissional encontrou apoios para “ligar peças”. “Foi um ano e meio de desenvolvimento do business plan para a start up e muitos contactos realizados com especialista da GALP, da EDP. Tive ajuda do Banco Mundial, assessorando-nos no sentido de nos colocar em contacto com as pessoas certas, conseguimos (não fui só eu) ter acesso à directora do IFC (Corporação Financeira Internacional – membro do Grupo Banco Mundial) em Angola.” O estreante num concurso para implementação de projectos, a trabalhar a tempo inteiro como arquitecto e a dedicar as horas vagas a este trabalho de grupo na start up que idealizava com quatro parceiros, começa em 2020, no EuroAfrican Forum, a ter uma visão mais global da alta finança. Era preciso criar um modelo de negócio sustentável que permitisse o retorno do investimento, a médio prazo, dos tais 5 milhões de dólares que anunciava o site das Nações Unidas. O projecto? “Era uma planta solar com 5 megawatts, de início, que seria escalada e era escalável para, em 10 anos, conseguirmos fornecer energia elétrica a 500 mil angolanos, distribuídos pelas várias províncias, através de painéis solares que seriam assistidos por baterias inteligentes, a serem instalados onde existe, actualmente, o Parque Solar do Biópio, na Baía Farta, mas também no Namibe, Huíla, Huambo. Tínhamos a noção de que poderíamos dizer: podem desfazer-se das centrais termoelétricas pois temos centrais fotovoltaicas em que investimos metade do valor que se gasta anualmente em centrais termoelétricas; com esse valor podem alimentar 3 milhões de angolanos.”

“Cada um de nós, africanos, temos de olhar para nós aceitando que estamos na Diáspora” 

Sacassinda já vestiu a camisola de Angola por várias vezes. Esteve na Nações Unidas Youth4Cimate PreCop26 como delegado, foi convidado da BCSD Portugal como interveniente no Plenário Principal, foi, no ano transato, delegado por Angola na NABC African-Neetherlands e participou da 77.ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas na Youth4Climate. Os emails que vai enviando e que não têm qualquer retorno fazem-no lembrar de quando, aos 15 anos, reprovou a matemática. Da mesma forma, não ter levado por adiante o projecto da start up fá-lo acreditar que é preciso ter paciência, perseverança. “Após a ‘transição diplomática’ que houve criaram-se expectativas que hoje, de certa forma, vemos que saíram da linha que se esperava. Cada um de nós, angolanos, africanos temos de olhar para nós aceitando que estamos na Diáspora, mas não nos esquecendo dos nossos ancestrais, do nosso passado, das nossas raízes independentemente do que possa estar a acontecer, de nós não concordarmos com os certos posicionamentos. Eu acredito que a vida acontece com aquilo que nós fazemos e não com o que esperamos que a vida venha a fazer. Nestes últimos três, quatro anos criei este sentimento de que eu tenho de dar algo à Pátria.”

 

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