Opinião

Guilherme d'Oliveira Martins

DN

22-11-2022 11:30

22-11-2022 11:30

Guilherme d'Oliveira Martins

DN

O meu saudoso amigo Pepín Vidal-Beneyto, democrata e europeísta dos quatro costados, resistente espanhol com provas dadas e amigo de Portugal até ao fim da vida, animador ativo dos Encontros de Sintra da SEDES nos anos 1990, concordava com José Mattoso sobre a importância dos sentimentos de pertença das nações como elementos identitários, complementares da globalização. Acaba de ser publicada por João Paulo Oliveira e Costa, a obra Portugal na História – Uma Identidade (Temas e Debates, Círculo de Leitores), onde se afirma que “a realidade vivida pelos povos continua a estribar-se por todo o mundo nesse sentimento de pertença a uma entidade agregadora, associada a um determinado território, e a que ómega convencionámos chamar nação”. Contudo já não se trata do alfa e da ideia de pertença, já que a legitimidade política é hoje também supranacional.

Na senda de José Mattoso e de Alexandre Herculano aí lemos: “Na verdade, para responder à pergunta “Porque é que Portugal existe?” não basta olhar para o país como se este vivesse, se constituísse e se afirmasse “orgulhosamente só”, mesmo que essa narrativa seja recorrente desde os primórdios da cronística em Portugal”. A vontade desempenhou um papel fundamental, enquanto a orografia foi decisiva para o sucesso da independência, apesar de condicionar a economia, a norte com maior potencial de fertilidade, com as terras a serem retalhadas pelas cadeias montanhosas, enquanto os terrenos do Sul, onde as juntas de bois e a maquinaria podem trabalhar de modo compensador, são mais secos e menos férteis. É certo que a exiguidade do território condicionou sempre a demografia, com uma população escassa e um mercado interno exíguo, com a natureza enrugada do território a dissuadir aventuras militares externas. Com pouca terra e muito mar, sol e sal, carências e abundâncias, falta de trigo, exportação de mel, vinho, azeite e cortiça, além da importância das ilhas atlânticas, que evitaram que Portugal ficasse cercado e dependente de potências mais poderosas para navegar pelos mares, a fronteira antiga de Alcanizes corresponde a uma longa estabilidade territorial – pois, como disse Zurara, “de uma parte nos cerca o mar e de outra temos muro no reino de Castela”. E o mar “foi o grande meio de comunicação de Portugal com o exterior e raramente representou uma ameaça para o país” – o que nos levou depois de D. João I a desenvolver uma política de neutralidade em relação aos grandes conflitos europeus, como potência marítima e agente da política intercontinental.

O autor procede à análise integrada de uma identidade aberta e complexa, capaz de compreender permanências e ritmos do tempo (território; “melting-pot”, finisterra indo-europeia, judaica, árabo-berbere e africana; povo inteiriço entre tensões e memórias, periferia europeia integrada e interface do mundo; bárbaros perante os povos que os portugueses foram encontrando). E, em complemento, temos os prenúncios da autonomia, a afirmação de uma identidade com vislumbres de país, a sobrevivência, a primeira fronteira marítima, a invenção de um projeto novo, a reinvenção de nova fronteira de mar, recomposições e incertezas internas, a nova Hispânia, sonhada pelo Príncipe Perfeito e a tomada de consciência de que “nunca o povo português e o castelhano couberam em um saco que não rompesse”. Entre o Auto da Índia e Os Lusíadas, com mercadores e missionários, a pluricontinentalidade pressupõe a ocorrência de circunstâncias que favorecem uma identidade diversa e plural de que Luís Fróis ou, diferentemente, Fernão Mendes Pinto são símbolos, não podendo esquecer-se o extraordinário caleidoscópio brasileiro… Daqui resulta termos de nos libertar dos limites do império e da perspetiva eurocêntrica e colonialista da historiografia tradicional, preferindo uma dinâmica interativa e não unilateral. E assim num tempo que perdura até aos nossos dias, Portugal vive como memória de futuro.

Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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